Bandeira Vermelha e Negra da FASP

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Bandeira da Federação Anarquista de São Paulo

A Confederação

" Quando a Confederação chegar nenhum muro, casa, apartamento, Status Cow, propriedades, radicais e trabalhos vão separar você de você que sera o carrasco e a vitima de você mesmo.
Por tanto se amem e sejam felizes, pois os bons frutos seram multiplicados e os maus frutos serão punidos em meu jardim.
Estou cansado de ganhar almas de Ingratos que ganharam tudo isto aqui e me prodizem maus frutos no paraizo. "

The Proibid

A Coluna Anarquista Organicista

A Federação Anarquista é a Espinha Dorsal do Anarquismo

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

DA PERIFERIA PARA O CENTRO



SUJEITO REVOLUCIONÁRIO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Felipe Corrêa


É o próprio povo, são os famintos,
são os deserdados os que têm de abolir a miséria.
Ricardo Flores Magón


O CONTEXTO DA A.I.T.

O anarquismo, como ideologia, e, portanto, “um conjunto de idéias, motivações, aspirações, valores, es­trutura ou sistema de conceitos, que possuem uma cone­xão direta com a ação — o que chamamos de prática política”1 —, propõe a derrubada do capitalismo e suas instituições fundamentais — dentre elas o Estado —, rumo ao socialismo libertário. Portanto, uma reflexão sobre o anarquismo, hoje e sempre, deve considerar este seu caráter ideoló­gico, de busca pela transformação social.
O próprio surgimento do anarquismo na obra de Proudhon, e mais concretamente no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) — na atuação de Bakunin e outros militantes da Aliança da Demo­cracia Socialista — confirma este caráter.
A estratégia de transformação social proposta por Bakunin e os aliancistas era dupla. Por um lado, estimu­lavam o fortalecimento dos movimentos sociais da época e sua aglutinação em torno da A.I.T., que associava li­vremente os explorados em torno de uma base econô­mica comum, independente de sua ideologia. A força popular da A.I.T. constituía-se como principal meio de se chegar à revolução social. Por outro lado, trabalhavam — por meio da influência da Aliança (primeira organi­zação específica anarquista) — para impulsionar os tra­balhadores da A.I.T. à revolução social.
Nesta dupla atuação, que diferenciava o nível polí­tico e anarquista da Aliança do nível social e não-anar­quista da A.I.T., Bakunin definiu os papéis de cada um destes níveis:

A Aliança é o complemento necessário da Internacional... — Mas a Internacional e a Alian­ça, tendendo para o mesmo objetivo final, perse­guem ao mesmo tempo objetivos diferentes. Uma tem por missão reunir as massas operárias, os mi­lhões de trabalhadores, através das diferenças das nações e dos países, através das fronteiras de todos os Estados, num só corpo imenso e com­pacto; a outra, a Aliança, tem por missão dar às massas uma direção verdadeiramente revolucio­nária. Os programas de uma e de outra, sem se­rem nada opostos, são diferentes pelo próprio grau do seu desenvolvimento respectivo. O da Inter­nacional, se o tomarmos a sério, também [con­tém] em germe, mas só em germe, todo o progra­ma da Aliança. O programa da Aliança é a expli­cação última do [programa] da Internacional.2

Em sua proposta de atuação em níveis diferencia­dos, Bakunin sustentava que o nível político e o nível social complementavam um ao outro. A estratégia de transformação social revolucionária proposta por ele ba­seava-se em uma interação dialética do nível político com o social. As forças populares, organizadas de baixo para cima na A.I.T., seriam as verdadeiras forças respon­sáveis pela revolução social e capazes de levá-la a cabo. As forças anarquistas, organizadas na Aliança, e em permanente contato com a A.I.T., exerceriam a influên­cia necessária, de maneira antiautoritária, garantindo seus objetivos revolucionários. Ao organizar-se como mi­noria ativa, a Aliança dava força à proposta anarquista, buscando consolidá-la no seio das lutas sociais.
Neste contexto da A.I.T., duas propostas de trans­formação social revolucionária foram confrontadas. Uma delas, chamada de “centralista”, defendida pelos marxis­tas, e a outra, chamada de “federalista”, defendida pelos libertários, dentre eles Bakunin e outros membros da Aliança.
Entre as divergências que existiam, e que foram se evidenciando ao longo da história, podemos citar duas, que são trabalhadas de maneira ímpar no texto de Rudolf de Jong. As diferenças em torno do sujeito revolucio­nário e do caminho para a transformação social. Estas duas diferenças separaram, e ainda separam, em grande medida, duas propostas diferentes de entender a estraté­gia revolucionária: a anarquista e a marxista.
Rudolf de Jong escolheu para trabalhar todo o pano de fundo desta análise do sujeito revolucionário e da transformação social as relações que definiu como “cen­tro-periferia” que, se por um lado retomam concepções clássicas do anarquismo, por outro nos trazem contri­buições relevantes para o anarquismo social e militante de hoje.


RELAÇÕES CENTRO-PERIFERIA

As relações centro-periferia baseiam-se em uma forma libertária de se enxergar as relações presentes em nossa sociedade. Elas estão fundamentadas nas relações de domínio estabelecidas pelos centros em relação às periferias, entendendo que a dominação existe quando uma pessoa ou um grupo de pessoas utiliza-se “da força social de outrem (do dominado), e, conseqüentemente, de seu tempo, para realizar seus objetivos (do domina­dor) — que não são os objetivos do agente subjugado”3. Assim, desde as questões mais complexas como o capita­lismo e o Estado, até as relações de poder dentro de um movimento social ou mesmo de uma organização política podem ser analisadas por esta perspectiva. A luta perma­nente dos anarquistas, que se constituiu classicamente pelo fim das relações de domínio, é colocada por Rudolf de Jong como a luta permanente pelo fim das relações centro-periferia.
Este objetivo norteia a teoria e a prática dos anarquis­tas. Ao conceber um modelo teórico de transforma­ção social, a busca pelo fim das relações centro-periferia su­gere uma reflexão crítica acerca do Estado, do partido, do exército e das posições de direção e/ou vanguarda. Sugere, também, uma definição do sujeito revolucionário, agente privilegiado deste processo de transformação social.
O fim das chamadas relações centro-periferia nor­teia toda a atuação dos anarquistas em sua luta na busca da revolução social, fato este que já vem se confir­mando pela estratégia de transformação social revolu­cionária adotada pelos anarquistas, desde a A.I.T., ainda no século XIX. É este modelo de luta, da periferia para o centro, que vem distinguindo anarquistas e a grande maioria dos marxistas, na busca por esta transformação. Comparando as estratégias marxista e anarquista para a transformação social, podemos dizer que

os revolucionários marxistas, os reformistas so­ciais e, em geral, a maioria dos militantes de es­querda querem sempre usar o centro como um instrumento — e na prática como o instrumento — para a emancipação da humanidade. Seu mo­delo é sempre um centro: Estado, partido ou exército. Para eles a revolução significa, em pri­meiro lugar, a tomada do centro e de sua estru­tura de poder, ou a criação de um novo centro, para utilizá-lo como um instrumento para a cons­trução de uma nova sociedade. Os anarquistas não desejam tomar o centro; desejam sua des­truição imediata. É sua opinião que, depois da revolução, dificilmente haverá lugar para um cen­tro na nova sociedade. A luta contra o centro é seu modelo revolucionário e, em sua estratégia, os anarquistas tentam evitar a criação de um novo centro.4
A partir desta diferença entre anarquismo e mar­xismo, e do modelo das relações centro-periferia colo­cado por Rudolf de Jong, podemos refletir sobre duas diferenças fundamentais que vêm separando, desde o século XIX, estas duas formas de conceber a transfor­mação social revolucionária: o entendimento de quem é o sujeito revolucionário e do caminho mais adequado para a transformação social revolucionária.


O SUJEITO REVOLUCIONÁRIO

Uma discussão que vem sendo travada há tempos dentro da corrente socialista revolucionária, sendo esta entendida de maneira ampla, é sobre quem seria o su­jeito revolucionário, ou seja, aquele setor da população que teria a responsabilidade e a capacidade de realizar a revolução. Ainda na A.I.T., evidenciou-se uma dife­rença entre a concepção de Marx e a de Bakunin.
Marx, ao realizar sua análise da história e identifi­car a contradição evidenciada na luta de classes entre a burguesia e o proletariado, colocava sua expectativa em uma parte específica do proletariado: o proletariado in­dustrial e urbano, que existia em abundância nas regiões mais desenvolvidas economicamente. Marx acreditava que, antes da revolução rumo ao socialismo, que condu­ziria à ditadura do proletariado, a sociedade deveria passar por uma revolução burguesa, que estabelecesse o capitalismo de maneira plena, desenvolvendo as forças produtivas e criando este proletariado industrial — o sujeito revolucionário que conduziria a sociedade à sua emancipação. Desta maneira, as forças progressistas da sociedade seriam a burguesia (que transformaria as eco­nomias pré-capitalistas em capitalismo) e o proletariado (que transformaria o capitalismo em socialismo).
Assim, apesar do conjunto de classes exploradas ser muito mais amplo que este setor do proletariado definido por Marx como sujeito revolucionário, ele não acredi­tava que outros setores pudessem ser investidos desta função revolucionária. O lumpemproletariado, os cam­poneses, trabalhadores manuais e as culturas pré-capita­listas não teriam, para ele, um papel revolucionário; muitas vezes, ao contrário, seriam forças conservadoras.
Bakunin trabalhava com um conceito mais amplo e generoso de sujeito revolucionário. Incluía nele, com grande ênfase, os camponeses, concebendo que a revo­lução não poderia ser realizada, plenamente, pelo prole­tariado industrial e urbano. A revolução social, que conduziria ao socialismo libertário deveria, necessaria­mente, contar com a contribuição dos camponeses. Enfa­tizava Bakunin que:

A sublevação do proletariado das cidades não é suficiente; com ela teríamos somente uma re­volução política, que teria necessariamente con­tra e1a a reação natural e legítima do povo dos campos, e esta reação, ou unicamente a indiferença dos camponeses, esmagaria a revolução das cida­des, como aconteceu ultimamente na França. Só a revolução universal é suficiente­mente forte para inverter e quebrar o poder orga­nizado do Estado, sustentado pelos recursos das classes ricas. Mas a revolução universal é a revolu­ção social, é a revolu­ção simultânea dos povos dos campos e das cidades. É isso que é preciso organi­zar, — porque sem uma organização preparató­ria, os elementos mais fortes são impotentes e nu­los.5 (grifos nossos)
Que fazer? Não podendo impor a revolução nos campos, é preciso produzi-la, provocando o mo­vimento revolucionário dos próprios camponeses, le­vando-os a destruir, com as suas mãos, a ordem pú­blica, todas as instituições políticas e civis e a cons­truir, a organizar nos campos a anarquia.6

Ao discutir a revolução social na Europa e dar pre­ferência aos países “periféricos” como Espanha, Rússia e Itália, Bakunin diferenciava-se de Marx, dando, além desta atenção ao potencial revolucionário dos campo­neses, ênfase ao “lumpemproletariado” — que aparece descrito abaixo como “proletariado esfarrapado” — em suas reflexões sobre a revolução na Itália.

Não existe na Itália, como em muitos outros países da Europa, classe operária separada, em parte já privilegiada graças a altos salários, ga­bando-se inclusive de certos conhecimentos li­terários, e a tal ponto impregnada das idéias, das aspirações e da vaidade burguesas, que, os ope­rários que pertencem a este meio, só se diferen­ciam dos burgueses por sua condição, de forma alguma por sua tendência. É sobretudo na Ale­manha e na Suíça que existem muitos operários deste tipo; todavia, na Itália, há bem poucos, tão poucos que eles estão perdidos na massa e não têm nenhuma influência sobre ela. O que predo­mina na Itália, é esse proletariado esfarrapado, dos quais o Srs. Marx e Engels e, em seguida, toda a Es­cola da social-democracia alemã, falam com o mais profundo desprezo, e bem injustamente, pois é nele, e apenas nele, e não na camada aburguesada da massa operária, que reside, na totalidade, o espírito e a força da futura revolução social.7 (grifos nossos)

Rudolf de Jong, ao mapear as relações centro-peri­feria, retoma estes conceitos do anarquismo clássico que foram expressados por Bakunin e os extrapola, propondo uma série de relações que constituem toda importante base para a concepção do sujeito revolucionário de hoje. Estas relações de dominação — que constituem as rela­ções centro-periferia e que, portanto, nos fazem enten­der o conjunto de classes exploradas — identificam como explorados os membros das culturas e sociedades completamente distantes do centro e também daquelas que, em contato com o centro, buscam manter sua iden­tidade (fundamentalmente os indígenas). Identificam, ainda, explorados como pequenos produtores, trabalha­dores especializados, camponeses, “lumpemproletariado”, desempregados, trabalhadores precários e assalariados, pobres etc., mesmo sabendo que várias destas categorias se sobrepõem. Assim, para ele, todas estas vítimas das relações centro-periferia constituiriam o sujeito revolu­cionário de hoje.


A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL REVOLU­CIONÁRIA

O modelo de transformação social revolucionária proposto pelo anarquismo também diverge amplamente dos modelos derivados do marxismo, sejam eles reformis­tas ou revolucionários. Desde a A.I.T., a questão entre os meios e os fins permanece a mesma. Isso porque, entre marxistas e anarquistas, geralmente houve certo acordo em relação à crítica do capitalismo e uma aproximação na proposta de sociedade futura. A diver­gência sempre se deu, e ainda se dá, em relação aos meios de se chegar ao fim desejado. Entre outras coisas, os anarquistas nunca concordaram com o papel do Es­tado e do socialismo como “período intermediário” (de ditadura do proleta­riado) reivindicado pelos marxistas.
Para a grande maioria dos marxistas, a revolução passa, necessariamente, pela tomada do Estado e pelo estabelecimento de um período de centralização e dita­dura, fato que nunca foi aceito pelos anarquistas. Baku­nin, em um prognóstico mais do que certeiro, previa, ainda no século XIX, o que seriam as experiências “so­cialistas” do século XX. Previa ele que este modelo de transformação social — que Rudolf de Jong chamaria de transformação do centro para a periferia — não conduz à emancipação do povo, mas sim à continuidade da sua escravidão. Isto porque não há como se defender os inte­resses da periferia — neste caso, o povo explorado — por meio de uma instituição do centro — o Estado.
Bakunin conseguiria antever que, assim que o Es­tado fosse tomado, ainda que sob justificativa da defesa dos interesses do povo, seria criada uma nova classe de exploradores que continuaria a dominação, ao invés de acabar com ela. Esta “nova classe”, ainda segundo Ba­kunin, nunca mais abandonaria as posições de privilégio adqui­ridas. O socialismo como período intermediário, ou a “ditadura do proletariado”, nunca chegaria à socie­dade sem Estado. A nova classe no comando do Estado passaria a defender não mais os interesses do povo, mas sim os seus próprios interesses.
Tudo isso porque o problema não está em quem ocupa o Estado, mas no Estado em si. Sabemos que não é suficiente substituir o rei, se a monarquia continua, e o mesmo vale para o Estado. A questão não é questionar quem está no Estado, mas o Estado em si, pois como ele é um pilar fundamental do capitalismo, não é neutro, re­produz e sustenta relações de domínio e exploração em seu seio. Assim,

(...) nenhum Estado, por mais democráticas que sejam as suas formas, mesmo a república política mais vermelha, popular apenas no sentido desta mentira conhecida sob o nome de representação do povo, está em condições de dar a este o que ele precisa, isto é, a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem ne­nhuma ingerência, tutela ou coerção de cima, porque todo Estado, mesmo o mais republicano e mais democrático, mesmo pseudopopular, como o Estado imaginado pelo Sr. Marx, não é outra coisa, em sua essência, senão o governo das mas­sas de cima para baixo, com uma minoria inte­lectual, e por isto mesmo privilegiada, dizendo compreender melhor os verdadeiros interesses do povo, mais do que o próprio povo.8

A coerência entre meios e fins, fortemente defen­dida no anarquismo, aponta ser uma imensa contradição querer defender o conjunto de classes exploradas, que é um elemento periférico da sociedade, por meio de uma instituição que é um pilar fundamental do sistema capi­talista e da sociedade de classes, ou seja, uma instituição central.
Diferentemente, a luta anarquista pela transforma­ção social revolucionária não passa pela tomada do Es­tado, mas sim pela mobilização de amplos setores da po­pulação para, de baixo para cima, promover a revolução social e abrir caminho rumo ao socialismo libertário. A revolução social, na concepção anarquista, promove uma imediata substituição do Estado pelas estruturas autogeridas e federadas do socialismo libertário, mo­mento em que o poder político é descentralizado e auto­gerido pelo povo. A nosso ver, o caminho para operar esta transformação social se dá por meio da criação e do de­senvolvimento de movimentos sociais, juntamente com a organização específica anarquista, desenvolvendo suas atividades de trabalho/inserção social, produção/repro­dução de teoria, propaganda anarquista, formação polí­tica, concepção e aplicação de estratégia, relações polí­ticas e sociais, gestão de recursos.
Os movimentos sociais, ao possuírem determinadas características (força, classismo, autonomia, combativi­dade, ação direta, democracia direta e perspectiva re­volucionária), terão condições de aliar-se na luta pela transformação social revolucionária, constituindo uma forma de organização popular ampla, que agregue o maior número possível de movimentos sociais radicali­zados, negando a centralização e hierarquia, e afirmando o federalismo e a horizontalidade. O papel da organiza­ção específica anarquista é, lado a lado com os movi­mentos sociais — ou com a própria organização popular — influenciar-lhes o quanto for possível, para que estas características estejam presentes, funcionando como o fermento deste bolo, que se aquece com o calor da luta de classes.
Este modelo de anarquismo foi desenvolvido, entre outros, por Malatesta, que sugere uma transformação social revolucionária neste sentido, da periferia para o centro. Vejamos um resumo deste modelo de transfor­mação.

Ao povo que quer se emancipar, só resta uma saída: opor violência a violência. Disso resulta que devemos trabalhar para despertar nos opri­midos o vivo desejo de uma transformação radical da sociedade, e persuadi-los de que, unindo-se possuem a força de vencer. Devemos propagar nosso ideal e preparar as forças morais e materiais necessárias para vencer as forças inimigas e orga­nizar a nova sociedade. Quando tivermos força sufi­ciente, deveremos, aproveitando as circunstâncias favoráveis que se produzirão, ou que nós mesmos provocaremos, fazer a revolução social: derrubar pela força o governo, expropriar pela força os proprietários, tornar comuns os meios de subsistên­cia e de produção, e impedir que novos gover­nantes venham impor sua vontade e opor-se à reorganização social, feita diretamente pelos inte­ressados. (...) Devemos fazer com que o povo, em sua totalidade e em suas diferentes frações, exija, imponha e realize, ele próprio, todas as melho­rias, todas as liberdades que deseja, na me­dida em que concebe a necessidade disso e que adquire a força para impô-las. Assim, propagando sempre nosso programa integral e lutando de for­ma inces­sante por sua completa realização, de­vemos incitar o povo a reivindicar e impor cada vez mais, até que ele consiga a sua emancipação definitiva. (...) A propaganda, oral ou escrita, sozinha, é impotente para conquistar para as nos­sas idéias toda a grande massa popular. É preciso uma edu­cação prática, que seja alternadamente causa e resultado da transformação gradual do meio. (...) Denunciando sempre esta espécie de governo, exigindo sempre a liberdade integral, devemos favorecer todo combate por liberdades parciais, convictos de que é pela luta que se aprende a lutar. Começando a provar a liber­dade, acaba-se por desejá-la inteiramente. De­vemos sempre estar com o povo; e quando não conseguirmos fazer com que queira muito, deve­mos fazer com que, pelo menos, ele comece a exigir alguma coisa. E devemos nos esforçar a que aprenda a obter por si mesmo o que quer — pouco ou muito —, e a odiar e a desprezar quem quer que vá ou queira fazer parte do governo. (...) Devemos procurar enfraquecê-lo [o gover­no] e obrigá-lo a fazer uso dele o menos perigosa­mente possível. Mas, esta ação, devemos fazê-la sempre de fora e contra o governo, pela agitação na rua, ameaçando tomar pela força o que se exige. Jamais deveremos acei­tar uma função le­gislativa (...) pois, assim agindo, diminuiríamos a eficácia de nossa ação e trairía­mos o futuro de nossa causa.9

Esta reflexão sobre a transformação social revolu­cionária evidencia ainda outra qualidade do texto de Rudolf de Jong. Ele também consegue extrapolar a ques­tão do debate em torno do Estado. É um fato que os anarquistas já discutiram abundantemente suas diferen­ças com os marxistas em torno do Estado. No entanto, as reflexões, a partir desta lógica das relações centro-peri­feria, nos dão base para discutir outras questões.
Primeiramente, duas que são citadas pelo autor: o partido e o exército.
Rudolf de Jong expõe, também de maneira ímpar, outra diferença entre as escolas do socialismo, que está em torno da idéia de partido, ou de organização política revolucionária. A concepção de partido leninista, ado­tada por praticamente a totalidade das organizações marxistas durante e após a Revolução Russa, também evidenciam esta concepção de transformação pelo cen­tro. Lenin, ao desenvolver sua teoria do partido, distor­ceu a proposta bakuninista de separação dos níveis polí­tico e social. Bakunin entendia esta separação da orga­nização anarquista e dos movimentos sociais necessária, porém complementar e dialética, em que havia influên­cias mútuas do político para o social e vice-versa. Lenin, ao pensar esta separação, colocou o nível político, repre­sentado pelo partido, acima do nível social, representado pelos “movimentos de massa”, considerando os segundos apenas uma correia de transmissão do primeiro. Esta re­lação, a partir do modelo leninista, não se constituía mais em uma relação mútua, como desejava Bakunin, mas sim uma relação de mão única, do partido para os movi­mentos.
A grande diferença entre os anarquistas e os mar­xistas (principalmente os leninistas) que defendem esta separação entre os níveis político e social, é que os mar­xistas consideram que o nível político possui hierarquia e domínio em relação ao nível social, o que se confirma quando analisamos sua concepção do par­tido como “van­guarda do proletariado”. O partido, a partir do momento que se coloca no topo da pirâmide, cuja base são os movimentos sociais, não pode ser outra coisa senão um centro. Quando o partido, constituído em vanguarda, se coloca acima ou à frente dos movi­mentos sociais, tende a buscar uma transformação social que, ainda que seja revolucionária, vem de cima para baixo, do centro para a periferia.
A proposta anarquista que defende esta separação dos níveis político e social é radicalmente diferente. A concepção de minoria ativa, que sustenta uma relação ética entre os níveis político e social, está em pleno acordo com a criação e o desenvolvimento dos movi­mentos sociais pela base, da construção da organização popular e da transformação social revolucionária que vai da periferia para o centro.

É por meio da ética, e somente por meio dela, que a organização anarquista não atua como um partido autoritário (mesmo que revolucionário). A ética do anarquismo, diferente de todas as outras ideologias, sustenta uma posição única de relação entre os níveis político e social. Por este motivo, a ética é absolutamente central a qual­quer organização anarquista que queira realizar trabalho com os movimentos sociais. Diferente­mente da organização de vanguarda, o nível po­lítico organizado como minoria ativa, que atua com ética, não possui relação de hierarquia e nem de domínio em relação ao nível social. Para nós, como enfatizamos, os níveis político e social são complementares e possuem uma relação dia­lética. Neste caso, o nível político complementa o nível social, assim como o nível social comple­menta o político.
Ao contrário do que propõem os autoritários, a ética da horizontalidade que funciona dentro da organização específica anarquista se reproduz em sua relação com os movimentos sociais. Quan­do em contato com o nível social, a organização específica anarquista atua com ética e não busca posições de privilégio, não impõe sua vontade, não domina, não engana, não aliena, não se julga superior, não luta pelos movimentos sociais ou à frente deles. Luta com os movimentos sociais, não avançando nem um passo sequer além do que eles pretendem dar.
Entendemos que a partir desta perspectiva ética de nível político, não existe fogo que não seja aceso coletivamente; não há como ir à frente, iluminando o caminho do povo, enquanto o pró­prio povo vem atrás na escuridão. O objetivo da minoria ativa é, com ética, estimular, estar junto ombro a ombro, prestar solidariedade quando ela é necessária e solicitada. Por isso, diferentemente da vanguarda, a minoria ativa é legítima.10

Rudolf de Jong também realiza interessantes refle­xões sobre as diferenças entre marxistas e anarquistas, na discussão da luta armada. Desde sempre, as duas con­cepções foram diferentes. Podemos considerar, ainda no seio da Revolução Russa, as diferenças entre o Exér­cito Vermelho, que funcionava com disciplina e hierar­quia militares obrigando seus soldados a lutar11, e o exér­cito insurrecional makhnovista, ou mesmo a luta armada na Espanha de 1936, em que os combatentes eram voluntá­rios e as posi­ções de disciplina e hierarquia radicalmente dife­rentes.
As próprias posições mais recentes sobre a guerri­lha, daqueles que se insurgiram contra os regimes dita­toriais na América Latina, é emblemática. De um lado, descendentes diretos do marxismo propunham o foquis­mo guevarista como estratégia de luta armada. Organi­zações no Brasil, na Argentina, no Uruguai etc. optaram por esta estratégia que, se por um lado sustentava uma ação de impacto no combate à ditadura, por outro pe­cava no apoio popular e na inserção social junto às ca­madas da população que se propunham a defender. Se por um lado constituía um foco de resistência relevante na luta contra o regime militar, por outro se descolava como uma vanguarda que queria lutar, não com o povo, mas pelo povo. Assim, o foquismo, na perspectiva de Ru­dolf de Jong, poderia ser pensado como uma tentativa de transformação do centro para a periferia.
Diferentemente, a Federação Anarquista Uruguaia (F.A.U.), que aderiu à luta armada contra a ditadura no Uruguai, realizou uma reflexão que buscava pensar a luta armada, de maneira distinta do foquismo, bastante em voga naquele momento. Em um documento chamado El Copey, a F.A.U. insiste em uma concepção de luta arma­da em acordo com os princípios anarquistas, conce­bendo a transformação da periferia para o centro, ou seja, com participação significativa nos movimentos sociais — chamados “movimentos de massas” pelos uru­guaios — e colocando a luta armada como mais um esforço revolu­cionário e não como o principal e único esforço a partir do qual se desencadeariam outros. Em sua reflexão, a F.A.U. colocou:

Concebemos a luta armada como aspecto fun­damental da prática política de um partido clan­destino, que atua também com base em uma es­tratégia harmônica e global, no nível de mas­sas. (...) Tudo parece indicar que a função da guer­rilha urbana não é buscar a vitória em um en­frentamento direto, mano a mano, com o exér­cito. (...) Definitivamente, a guerrilha urbana, quando se trata de busca da revolução social, pa­rece ter como função idônea preparar o salto, a passagem qualitativa para outra forma de luta através da qual pode ser conseguida a vitória de­cisiva no marco urbano, a insurreição. A guer­ri­lha urbana, cremos, portanto, só é legítima como preâmbulo e preparação necessária e im­prescin­dível da insurreição. Processo insurrecio­nal que, claramente, pode ter formas diversas, mas que implica sempre uma participação de certo volu­me dos setores de massas. (...) Não é necessário esperar que a metade mais um dos habitantes de uma cidade decidam se levantar em armas para fazer uma insurreição. (...) Por­tanto, quando alu­dimos a uma série de ações de massas de outro nível, está subentendido que participe o setor mais dinâmico das massas.12

Assim, apesar de a luta armada poder ser realizada pela organização política, ela não se constitui como sua única atividade e nem, muito menos, substitui a neces­sidade desta organização e de seu trabalho no nível social.
Uma segunda reflexão, que não é colocada direta­mente por Rudolf de Jong, mas que pode ser feita a partir de seu texto, é sobre a interação entre as organizações anarquistas e os movimentos sociais. Esta reflexão da transformação pela periferia nos faz crer que, ao estabe­lecer este contato com os movimentos sociais, os anar­quistas devem, em primeiro lugar, buscar movimentos sociais que signifiquem a periferia do sistema em que vivemos, e, em segundo lugar, dentro destes movimen­tos, buscar contato com as “áreas periféricas”, ou seja, a base e não com a direção.
Para o trabalho social, os anarquistas devem eleger os movimentos sociais mais dispostos a radicalizar, e de­fender posições práticas semelhantes às suas. Isto é mais fácil, geralmente, nos movimentos sociais em que a luta de classes é mais evidente; movimentos que ainda são pouco institucionalizados, hierárquicos etc. Este racio­cínio é fundamental para saber onde as sementes do anarquismo devem ser plantadas e, dentro de cada con­texto, quais são as movimentações populares que devem receber a atenção dos anarquistas.
O caso do sindicalismo é um exemplo que deve ser analisado com bastante atenção. O nível de hierarqui­zação e burocratização em que se encontram diversos sindicatos, muitas vezes, pode fazer com que eles sejam terrenos por demais complicados de atuar — utilizando muita energia dos anarquistas e oferecendo poucas pos­sibilidades. No entanto, isso não pode ser generalizado. Há setores sindicais ainda bastante autônomos, comba­tivos e com possibilidade de trabalho em favor do con­junto das classes exploradas. A questão é sempre veri­ficar se o sindicato, ou mesmo o movimento social, é ou não um espaço com estas possibilidades. Se for, merece esforço.
Esta reflexão sobre o terreno mais adequado para plantar as nossas sementes deve sempre ser feita. A experiência vem mostrando que é nos setores mais peri­féricos que as pessoas possuem mais afinidade com o anarquismo — os setores em que as pessoas têm muito pouco, ou nada a perder.
Quando em contato com os movimentos sociais — e sabemos que muitos deles estão hierarquizados e domi­nados por uma direção descolada da base — os anarquis­tas devem sempre se aproximar da base e não da direção. Fruto de outra série de experiências práticas, esta atua­ção da periferia para o centro dentro dos movimentos sociais indica que os esforços das organizações anarquis­tas devem se dar sempre de baixo para cima, buscando construir relações com os militantes de base e, por meio de tendências ou outros agrupamentos ou entidades, fazer com que a direção seja ouvida pela ampla maioria da base, que pode exigir maior participação, democracia direta etc. Assumir posições de direção nos movimentos sociais pode e deve ser objeto de grande preocupação entre os anarquistas, pois, quando isso acontece, pode-se, mesmo que sem querer, estar insistindo em uma transformação do centro para a periferia, com conse­qüências funestas para a luta.


PENSANDO AS RELAÇÕES CENTRO-PERIFERIA HOJE

Finalmente, podemos afirmar que o anarquismo, como proposta ideológica de transformação social revo­lucionária, teve, e ainda tem, muito a oferecer ao campo do socialismo. Esta reflexão sobre a transformação social passa, inevitavelmente, por uma discussão acerca da luta de classes e de seus atores na sociedade de hoje.
Nitidamente, a contradição clássica entre a bur­guesia e o proletariado não dá conta das relações de do­minação de hoje. Ao refletirmos sobre a questão da classe no Brasil, podemos relacionar a classificação cen­tro-periferia de Rudolf de Jong com uma série de experiên­cias que apontariam para novos e potenciais sujeitos re­volucionários. Os sem-terra, sem-teto, desempregados, catadores de material reciclável, indígenas, camponeses, pequenos produtores etc., foram (e algumas vezes ainda são) classificados como “lumpemproletariado”, tendo negado o seu potencial revolucionário. No entanto, é um fato que estes sujeitos despontam como atores impor­tantes e fundamentais nos movimentos sociais e nas lutas de nosso tempo. Junta­mente com trabalhadores e estu­dantes, podem consti­tuir hoje esta importante aliança de classe em torno do projeto revolucionário.
Para este projeto, o conjunto de classes exploradas tem condições de operar, a partir dos movimentos sociais, transformações sociais significativas. O modelo anar­quista de transformação social revolucionária possui aspectos bastante relevantes que podem ajudar a conce­ber esta transformação.
1. Trabalhar as transformações sociais por fora do Estado, que não deve ser utilizado como um meio, nem como propõem os reformistas, nem como pro­põem os revolucionários.

2. Reforçar a idéia anarquista de defender a ideo­logia dentro dos movimentos sociais e não o contrá­rio, quando os movimentos funcionam como correia de transmissão de um partido ou uma ideologia deter­minada.

3. Sustentar uma interação complementar e dia­lética entre a organização política e os movimentos sociais (níveis político e social), em que há desenvolvi­mento mútuo e não há hierarquia e domínio.

4. Reconhecer a inevitabilidade do enfrentamento para a transformação revolucionária, refletindo, de maneira estratégica e tática, como e quando a violên­cia deve ser utilizada, ainda que seja sempre como resposta, e, portanto, uma forma de autodefesa.

5. Conceber formas de atuação que dêem espaço para o envolvimento das bases, lutando com o povo e não por ele ou à frente dele.
6. Eleger os melhores espaços para atuar, bus­cando movimentos que agrupem militantes que so­frem de maneira mais dura os efeitos do capitalismo e que podem ser grandes aliados na luta de classes.

7. Buscar as bases dos movimentos sociais, cons­truindo um projeto de organização popular que vá de baixo para cima, ou da periferia para o centro, visando à transformação social revolucionária.

Novembro de 2008

Notas:

1 FARJ. Anarquismo Social e Organização. São Paulo/Rio de Janeiro: Faísca/FARJ (no prelo).

2 Mikhail Bakunin. “Educação Militante”. In: Conceito de Liberdade. Porto: Rés Editorial, s/d pp. 151-152.

3 Fabio López López. Poder e Domínio: uma visão anar­quista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2001 p. 83.

4 Rudolf de Jong. A Con­cep­ção Libertária da Transfor­mação Social Revolucionária.

5 Mikhail Bakunin. “Necessidades da Organização”. In: Conceito de Liberdade, p. 137.

6 Mikhail Bakunin. “Os Camponeses”. In: Conceito de Liberdade, p. 119.

7 Mikhail Bakunin. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Ima­ginário, 2003, pp. 29-30.

8 Ibidem. p. 47.

9 Errico Malatesta. “Programa Anarquista”. In: Escritos Revolucionários. São Paulo: Imaginário, pp. 13-23.

10 FARJ. Anarquismo Social e Organização.

11 Sabe-se que no Exército Vermelho os desertores eram mortos e que, quando isso não funcionava mais, os bol­cheviques ameaçavam de morte as famílias dos comba­tentes, em caso de deserção.

12 FAU. El Copey. A utilização da palavra “partido” aqui é feita da mesma maneira que o fez Malatesta, que por partido referia-se à organização específica anarquista.

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